O julgamento de dois índios, acusados de tentativa de homicídio por questões culturais, entrou para os anais da Justiça brasileira. O destino dos réus foi decidido por sete jurados e um juiz, todos indígenas, em um júri popular realizado no dia 23, na comunidade Maturuca, na região da Raposa Serra do Sol.
Para o reitor da Universidade Estadual de Roraima, Regys Freitas, o julgamento foi um momento histórico para o judiciário e para os povos indígenas. “Nós, da UERR, que estamos presentes em várias comunidades, também sabemos reconhecer como é importante essa aproximação, respeitando os usos e costumes dos índios, contribuindo para o fortalecimento desses povos”.
A Universidade, por seu trabalho junto às comunidades indígenas, foi uma das poucas instituições não ligadas diretamente ao julgamento a ser convidada. O governo estadual, através da UERR, vem oferecendo diversos curso e preparando mão de obra qualificada, atendendo pessoas em suas localidades e que não teriam condições de estudar em Boa Vista.
JULGAMENTO – O caso chamou a atenção por envolver uma entidade do mal, o Canaimé, tido por diversas etnias como um espírito assassino. No processo, os acusados confessaram que tentaram matar Antonio Alvino Pereira, cortando seu pescoço, por acreditar que ele estava possuído pelo “rabudo”.
Com a absolvição de um dos réus e condenação do segundo apenas por lesão corporal, os promotores do caso disseram que vão recorrer da sentença, inclusive pedindo anulação do júri popular. O prazo para recorrer é de cinco dias após o julgamento.
“Vamos recorrer porque o julgamento se deu de forma contrária às provas dos autos. O réu que cometeu o delito mais grave foi absolvido. Quanto ao outro, que cometeu um delito menos grave, foi condenado. Acreditamos que os jurados não tenham entendido bem a quesitação. Agora o Tribunal é quem irá decidir”, disseram os promotores Carlos Paixão e Diego Oquendo.
O desembargador presidente do Tribunal de Justiça de Roraima, Almiro Padilha, que esteve presente ao julgamento, disse que é natural que as partes recorram. “Se houver o recurso, logicamente que o Tribunal irá examinar com cautela e proferirá uma decisão que entender mais soberana”.
Thais Lutterback, advogada de defesa de Elcio da Silva Lopes, acusado de cortar o pescoço da vítima, afirmou que não houve qualquer problema no julgamento. “Eles (os réus) confessaram e nunca negaram o crime. Os jurados entenderam que houve um contexto que justificava o cometimento do delito, por isso foram absolvidos”.
O defensor público José João, que assistia a Valdemir da Silva Lopes, que foi condenado, disse que sua tese foi vitoriosa porque os jurados entenderam que não houve tentativa de homicídio e sim o crime de lesão corporal leve. “Como nos casos de lesão corporal a vítima tem seis meses para representar, e nesse caso não representou, o crime prescreveu. Então ele também está absolvido”.
O CRIME – Consta no processo que o crime aconteceu em um mercadinho, na sede do município de Uiramutã, no dia 23 de janeiro de 2013, por volta das 15 horas. Os acusados estariam embriagados, na companhia de um primo, identificado por Mozarildo, que teria discutido com a vítima. Em um determinado momento, segundo a denúncia, Mozarildo teria distraído Antonio enquanto Elcio teria vindo por trás e cortado seu pescoço.
Mesmo ferido gravemente, Antonio teria lutado com Valdemir, quando foi atingido, desta vez no braço, por um canivete. Os acusados foram presos e levados à delegacia de Pacaraima, onde confessaram que a tentativa de homicídio teria acontecido porque a vítima poderia ser o Canaimé que matara dois parentes deles, inclusive uma criança, pouco tempo antes.
No julgamento, que começou às nove horas e terminou às 23, os depoimentos foram divergentes, mas os acusados pediram desculpas à vítima, através de seus advogados, dizendo que houve um engano e que Antonio não era um canaimé e sim um homem trabalhador, pai de família e respeitado por sua comunidade.
ALCOOLISMO – A tese de que o crime foi motivado por vingança contra o canaimé não é aceita pelas lideranças indígenas da região da Raposa Serra do Sol. Eles atribuem ao alcoolismo, um problema que vem se agravando em diversas comunidades.
Jacir José de Souza, assessor para tuxauas, disse que “é da fronteira com a Guiana que vem a droga, a maconha. Vemos o alcoolismo entrando, invadindo nossas comunidades e isso preocupa a gente. É o que aconteceu no Uiramutã e está sendo julgado agora (dia 23). Jovens de 15 anos, estudantes, estão perdendo a cabeça, bebendo cerveja, cachaça, tudo. Isso eu não concordo. Esse tal canaimé, nem eu tenho conhecimento. Esse nome tá saindo agora, depois da demarcação”.
Para o tuxaua Zedoeli Alexandre, coordenador da Região das Serras, o culpado pelo crime seria o município do Uiramutã, por não fiscalizar a venda de bebida alcoólica aos indígenas. “Lá é onde se concentram muitos indígenas. E esse fato que aconteceu (a tentativa de homicídio), foi por embriaguez. Isso prejudica muito as comunidades”.
Zedoeli e Jacir afirmaram que as comunidades iriam se reunir, independente do resultado do júri, para apaziguar os ânimos das famílias dos envolvidos no episódio, com o objetivo de encontrar uma forma de manter a paz e voltar à rotina. Preferem dizer que não será um novo julgamento, mas sim encontrar o melhor caminho para os acusados e a vítima.
DESONRA – Maturuca é o centro organizacional de 72 comunidades indígenas da Região das Serras, administrada pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR). O Malocão Central foi palco da visita do então presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva, que em 2010 festejou com aqueles povos a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
O CIR lançou um documento, durante o julgamento afirmando que eles aceitaram a realização do júri por acreditar que o ato é uma forma de aproximação dos órgãos do Estado brasileiro com a cultura e a vida dos povos indígenas.
Afirmam que o crime aconteceu “no contexto das consequências nocivas que a sede do município do Uiramutã tem entre as comunidades indígenas” e que há anos estão denunciando a venda de bebidas aos índios.
Em nota disseram que “a imprensa tem mencionado que esse é um julgamento do canaimé, o que para nós é um enfoque extremamente delicado e sensível. A acusação de ser canaimé é uma ofensa muito grave, sem parâmetros de comparação na sociedade brasileira. A vítima e sua comunidade tem se sentido profundamente ofendidas por esse enfoque. Para nós é importante que a conclusão desse caso – o júri tratará apenas do aspecto penal – traga justiça para a vítima e para os que atentaram contra sua vida, restituindo de forma respeitosa a paz para os envolvidos, suas famílias e nossas comunidades”.
AVALIAÇÃO – O presidente do Tribunal de Justiça de Roraima, desembargador Almiro Padilha, afirmou que o julgamento representou o respeito do judiciário aos usos e costumes indígenas, avaliando que também foi uma forma de aproximação daquele Poder com as comunidades.
“O júri é válido, é legal. Foi feito conforme o procedimento do Código Processo Penal e de acordo com a Constituição Federal”, disse o juiz que presidiu os trabalhos e idealizador do primeiro júri popular indígena, Aluízio Ferreira Vieira, titular da comarca de Pacaraima. Acredita que foi uma forma peculiar de tentar resolver um conflito e que o julgamento deve ser reproduzido, fazendo a comunidade jurídica refletir.